Há muita gente que afirma haver cabras que têm necessidade de
apanhar e, em muitos casos… serem liquidados. Vou narrar um acontecido
naquele tempo, lá pelos lados de Morrinhos.
A única coisa que ainda existe na roça, desde os tempos idos,
satisfazendo ao roceiro, é o pagode. Ali êle dança, joga baralho, bebe
pinga, come roscas e biscoitos, aprecia os foguetes e ouve sanfona e
viola. Três ou quatro horas assim são o consolo de muitos dias de
trabalho exaustivo.
Quando um está com a roça no mato ou com a colheita apertada, faz o
célebre mutirão. Chega gente de todos os lados com as suas
ferramentas e uma muda de roupa limpa no embornal. Pegam eitos, uns
apostando, outros teimando para ver quem chega primeiro ao fim do
corredor. Estas apostas são sempre referentes ao baile: quem ganha
dança primeiro com a Rosinha ou com outra "zinha’ qualquer, conquanto
seja a moça disputada da festa. Para os últimos é reservada uma vaia
tremenda e eles passam por uma humilhação esmagadora. Depois do
serviço pronto então, vem a comezaina. Muita cachaça e muita comida. Em
seguida, os fogos, espantando cachorros e pondo a molecada a correr
pelos pastos atrás das varas dos foguetes. No final, o baile. Ali no
terreiro bem varrido, debaixo da tolda, dançam todos.
A sanfona toca o batido "mané-por-hora" e o trem vai bom até o dia amanhecer ou ainda mais.
Foi num desses pagodes que o Sebastião, o humilde Bastião, passou o pior pedaço de sua vida.
Lá pelas tantas, entra o Raimundo, o negro mais preto da redondeza,
com toda a sua arrogância e fama de "desmancha bailes". Foi logo em
cima da mulher
do Bastião para um arrasta-pé. A coitadinha excusou-se, dizendo que
não sabia dançar e que, demais, era casada e não ficava bem sair com
estranhos. O Raimundo ficou branco de raiva e encostou-se na lata de
quentão. Depois da coisa passada, ele deu com a Belmira e o marido
numa polca enfezada, dançando muito bem. Pensou: "É assim?" Com pouco
prazo, também, desapareceu dali. Foi admiração e alívio para todos,
pois o Raimundo nunca havia deixado um baile terminar normalmente;
sempre proporcionava uma arruaça.
Tudo correu muito bem.
O sol já ia alto quando o Bastião e a Belmira demandaram a casa. Ao
atravessarem o capão do mato deram com o Raimundo de carabina na mão.
— Gostaram do "bal", cambada? isso é lá jeito de gente fazer os outros esperar?
O pobre Sebastião não respondeu nada, pois nem que quisesse falar
alguma coisa a voz não passaria por cima do bruto nó da garganta.
Limitou-se a engolir em seco. Os quatro pés do casal também não
reagiam nem ao mínimo, pois não se moveram. O Raimundo pôs-se a
despir, mediante os olhos esbugalhados dos dois. Completamente nu mais
parecia um enorme toco depois da queimada.
Agora "vancê", eguinha enjeitadeira, tira os molambos e fica pelada feito bicho nascido de novo!…
O Sebastião quis opôr-se, mas desistiu, porque dois tiros de carabina 44 mexeram com a terra por baixo dos seus pés.
Tudo foi obedecido. Raimundo, com a carabina numa mão, puxou a
Belmira com a outra e ordenou ao marido que assobiasse uma polca bem
boa. O pobre não conseguia fazer bico-de-assobio, mas fê-lo
automaticamente, depois de uma canada da arma no pescoço. Raimundo
dançou fartamente com a mulher do músico até este ficar com os beiços
duros de tanto assobiar e a pobre esbandalhada de tanto requebrar.
Agora tu vai embora e deixa ela; depois ela vai, mais logo. Não
precisa voltar não, miserável… com’é que Deus põe gente tão à-tôa
assim no mundo?…
Como um cachorro que se vê livre da corrente, o Bastião ganhou a estrada.
Duas horas de espera para êle foram séculos. Uma mágoa tremenda
corroeu-o todo. A sua honestidade não concebia uma tal coisa. A
surpresa fora tamanha que o deixara desarmado até da cabeça. Não
conseguia nem pensar mais nada.
Quando Belmira chegou, fraca, trêmula, extremamente humilhada, o
marido não pôde falar-lhe: o nó permanecia na garganta. Um remorso
infiltrante fazia-o sentir-se culpado de tudo aquilo. Seguiu os
gestos da mulher que, tam-
bém, sem dizer palavra, juntava as poucas roupas e os pequenos
utensílios. Sebastião compreendeu tudo e pôs-se a ajuntar os parcos
móveis do rancho. Conhecia a mulher de sobra e bem sabia que ela era
de pouca conversa, e, quando enveredava para uma coisa, tinha que ser
aquilo mesmo.
Depois de tudo arrumado num só monte, do lado de fora, foi ter-se com o Cel. Ernestino, dono da fazenda.
Este já o esperava, pois alguém já havia avisado da mudança, porém, desconhecendo os motivos.
— "Bá tarde", seu coronel…
— Boas. Vamos chegando.
— Sim senhor…
— Senta aí. Algum negócio? — o homem era seco.
— Vim pra mode fazer com o senhor u’a berganha.
— Sendo uma coisa razoável, estou de acordo — disse o coronel interessado.
O roceiro laudeou-se de gestos, amarrotando sempre o chapéu. Se o
coronel não o arguisse, ficaria ali um dia inteiro e não diria o
intento. Depois soltou-se:
— O "causo" é qu’eu queria deixar a roça que tá plantada em troca
do senhor mandar levar os meus trens no carro pra fazenda do seu
Horácio, acolá, na cabeceira do corgo das Pedras…
— Mudança! por quê é que o senhor vai mudar?
— É qu’eu mais a mulher não tamos se dando bem aqui. Nós sempre carece de tá se mudando…
— Não é possível, o senhor ia tão bem… estava tão satisfeito !…
— A gente parece que vai, depois o trem zanga… dana tudo.
O Bastião, vendo-se obrigado, contou tudo direitinho, ao seu jeito,
com muitos rodeios, muita dificuldade de expressão e muita
humilhação.
— Ora, não é possível — irado, bradou o coronel — isto não pode
ficar assim, não! não pode! é um absurdo! aqui, dentro da minha
fazenda, marido eu (êle mandava fora, também) não admito! isto é uma
infâmia.
Os peões ouviam satisfeitos, pois sabiam que logo mais iriam ter "trabalho".
— Não consinto! faremos justiça primeiro. Depois o senhor não
querendo ficar, pode mudar-se para onde quiser. Vai por minha conta;
compro e pago a roça.
O Cel. Ernestino Soares andava para lá e pra cá, no alpendre e, depois gritou, numa raiva que o fazia tremer todo:
— Hilário, Firmino, Roque! Largam esses trens aí e venham já, aqui!
Nada demorou e os três caboclos apresentaram-se.
— Peguem os trens e vamos fazer um "serviço". Numa satisfação imensa, os homens prepararam-se,
num prazo de corisco (também andavam sempre prontos). Nem cinco
minutos para estarem cinco cavalos selados, tendo três deles carabinas
nas cabeças dos arreios. Ernestino virou para o interior da casa e
recomendou:
— Recolham os trens da casa do Bastião e tragam a mulher dele para cá.
Sebastião queria ficar, mas o patrão mandou montar. Partiram como
se fossem a um casamento, tendo as seguintes fisionomias: o coronel
como se fosse o pai da noiva; o Bastião, o noivo medroso; os três, os
convidados, que iriam se fartar na festa.
Indagando de todos os lados tiveram a notícia, ao escurecer.
Souberam que o preto costumava demorar-se, quando fazia alguma arte,
num rancho na roça de arroz do Capão, umas três léguas dali. Chamaram
nos cascos e pernoitaram no Capão, perto do rancho.
Ao clarear o dia abordaram o esconderijo do preto. Este, muito
desconfiado, com uma rabinha na mão, saudou-os, sem esperar ser
cumprimentado, como de praxe.
— Bom dia pra "vancêis" tudo.. .
— Bom dia, Raimundo — respondeu Ernestino.
— Vamos apiar… ou "vancêis" tão com pressa?…
— Se eu andasse com pressa não estaria com a idade que estou — retrucou o coronel.
O preto, completamente desequilibrado, tremia muito. Mexia muito
com a boca para coordenar algumas palavras e foi mudando de côr.
— Eu ia fazer um gole de café…
— Pois pode fazer. Pensa que já quebramos o jejum? Raimundo deixou os
grossos beiços entreabrirem-se, mostrando apenas as pontas dos dentes,
muito alvos, num sorriso congestionado.
— Vou buscar água no rêgo co essa rabinha…
— Pois pode buscar; quero ver o moca fumegar logo. 0 pobre coitado
tinha uma vontade louca de correr, embrenhar-se mato-a-dentro, mas sabia
que não escaparia dos balaços das 44 e 45. Também as pernas não
topariam uma tal parada, pois estavam nas mesmas condições das do
Sebastião e sua mulher, na manhã anterior. Um arrependimento profundo
arcou-lhe a consciência, porque êle bem conhecia o Cel. Ernestino
Soares.
O café já estava sendo servido em tigelinhas de louça, esbeiçadas, quando o coronel reprimiu:
— Café sem doce, Raimundo, gosto muito de café, mas desse jeito, não.
— Me esqueci, seu coronel; nem "seio" adonde que tou c’a cabeça…
— Pensando, naturalmente, no belo prazer de ontem cedo, ou já houve outro, depois disto?
Raimundo, com estas palavras, arregalou os olhos e as suas narinas tremeram:
— E… e… eu…?!
O coronel fixou o seu olhar penetrante, costumeiro, nestas ocasiões. O preto, maquinalmente temperou o café no bule ensebado.
Um silêncio de expectativa apoderou-se do ambiente. Seguiu-se o ruído do café servido e… só.
O Sebastião estava ansioso para que o patrão desistisse e fosse
embora; a sua honra havia sido ultrajada, mas era honra de pobre, de
gente desgraçada do mato. Mudar-se-ia e tudo seria esquecido. O
tribunal humilde de sua consciência não condenava ninguém.
O coronel passou uma vista d’olhos em derredor, por dentro do rancho.
— Já anda preparado, hein? Tudo no jeito, hein, Raimundo?
Já carrega a traia. Faz a besteira, depois pode ficar o tempo que quiser por aí, às escondidas, hein?
O negro bateu os beiços, mas só balbuciou, pois tremia tanto que não conseguia articular uma só palavra.
O coronel passou a mão pela cobertura do rancho de palha de arroz e disse, irônico:
— Do jeito que isto está seco não aguenta dois minutos de fogo…
O Raimundo, querendo pescar alguma coisa, perguntou desajeitadamente:
— "Vancê", meu coronel veio botar fogo no rancho?
— Não, mas poderá acontecer sozinho; está muito seco e com essa fornalha aí…
O preto sorriu, meio satisfeito, mas cortou, repentinamente o riso, pois veio-lhe à memória que ali havia dente de coelho.
Alguma coisa já havia sido combinada, porque o Firmino pôs-se a amolar uma faca numa pedra, caprichosamente.
O fogão estava a um canto do único cômodo da habitação; ao centro, um esteio que sustinha a cobertura.
O coronel mandou que o anfitrião enchesse a fornalha de lenha a fim
de cozinhar, rapidamente o feijão, para ligeiro almoço. O feijão
estava no fogo desde o dia anterior. Quando tudo foi satisfeito,
sentenciou:
— Olha aqui, Raimundo, negro ordinário, vagabundo! você deveria
saber em qual mato estava lenhando ao fazer aquela baixeza com os meus
agregados. Você deveria saber que eu zelo pelos meus peões como se
eles fossem meus próprios filhos, ouviu?! Tira a roupa como fez
ontem!
O preto titubeou e uma bala de carabina atravessou-lhe a carapinha.
Assim, nessas circunstâncias, não pestanejou em atender a ordem,
embora o fazendo demorado, pois os seus dedos trêmulos dificultavam a
passagem dos botões pelas casas. Ficou, novamente, como toco de pau
queimado. Os seus olhos fitavam, luminosos, os dos outros. Depois
tomou uma atitude muito firme e protestou, advinhando ou supondo
alguma coisa.
— Não, seu coronel, "vancê" me mata, se quiser, mas não faz uma coisa dessa.
O coronel riu, teatralmente. Aí acrescentou, zombeteiro:
— Não, não vai ser o que você está pensando; ninguém se rebaixaria a
tanto. Se você fosse mulher produziria asco em qualquer um, quanto
mais… homem… e preto…
Ao terminar estas palavras olhou para Roque que estava com um rolo
de arame. Este foi para o esteio do rancho e amarrou uma ponta a uns
setenta centímetros do chão. Ernestino ordenou ao Sebastãio:
— Este infeliz tirou sua honra moral; agora você tira a honra física dele; ajudem-no! — bradou.
Os três jagunços tomaram o Raimundo e levaram-no ao pelourinho
improvisado. O Sebastião movido mais pelo medo que pela coragem,
enleou aquele arame muito bem no esteio e às honras físicas do
desgraçado que urrava como um garrote na castragem. Um suor vasto
desceu-lhe pela testa e confluenciou-se com as lágrimas que lhe jorravam
pelas barbas esparsas, como enchente em margens de mato ralo. Depois
suplicou:
— Tem dó meu coronel… meu coronel, seu Ernestino … me perdoa dessa vez. Eu prometo nunca mais cair noutra.
— Se "vancê" meu coronel me soltar, eu sou seu escravo pro resto da vida. Faço o que "vancê" mandar…
Ernestino consolou-o com estas palavras:
— A justiça dos homens é muito severa, Raimundo. Eu cumpri a lei
deste sertão aqui. Se a gente deixar, a vaca vai pro brejo. Eu apenas
estou lhe trocando uma moeda.
Seguiu-se* um choro triste, entrecortado de soluços que fazia
condoer qualquer coração humano, com exceção daqueles quatro homens
moldados pela natureza. Sebastião não estava gostando daquilo, mas
desejava que Belmira visse; talvez ela até gostasse.
Ficaram todos imóveis, por algum tempo. Depois o coronel olhou para o fogo que já levantava labaredas bem altas.
Pegou da faca muito afiada e entregou-a ao preso:
— É bem capaz deste fogo alcançar o telhado, se o rancho pegar fogo desfaça-se daquilo que o culpou.
Montaram a cavalo e afastaram-se.
— Será que dá certo, coronel? — perguntou um dos capangas.
— Se êle não quiser ser torrado usará a faca. Se tal acontecer nunca mais molestará mulher de ninguém.
De fato, como havia planejado o coronel, o fogo atingiu, as palhas.
O pobre coitado tentou, cuidadosamente, cortar as voltas do arame,
mas teria melhor sorte se lhe dessem, em vez de faca, um alicate. As
labaredas devoravam a cobertura e as paredes de palha. Um calor
tremendo infernava o interior.
O Raimundo tinha dois caminhos a seguir: o suicídio ou desfazer-se
dos elementos da procriação. Para não se matar tinha dois motivos: o
da religião e o da covardia. Do primeiro êle estava livre, pois
desconhecia isto; o da covardia privava-o deste ato.
Quando o fogo já lhe tostava os pêlos, fechou os olhos e apartou-se do amarrado, usando a faca.
* * *
Fez êle mesmo, por muitos dias, os curativos com cinza de fogão,
urina e fumo de rolo. Ficou muito acabrunhado, vagando pelo mato,
combatendo as moscas varejeiras.
Não se alimentava.
Perdeu, em pouco tempo, a razão e tomou as proporções de um porco bem cevado.
O pobre eunuco ganhava dinheiro, comida, pinga e fumo, mostrando o sinal para os outros, rindo e babando sempre.
W. Bariani Ortencio: "Sertão o Rio e a Terra" — Livraria S. José — 1959.
Fonte: Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso. Seleção de Regina
Lacerda. Desenhos de J. Lanzelotti. Ed. Literat. 1962